Exmo. Sr. Desembargador Relator na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 70030187793
PROCESSO Nº 70030187793
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
PROPONENTE: PROCURADORA-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
REQUERIDA: CÂMARA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE
A CÂMARA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE, representada por seu Presidente, VER. SEBASTIÃO MELO, pela Procuradora signatária, conforme instrumento de mandato anexo, nos autos da ação em epígrafe, proposta pela Exma. Sra. PROCURADORA-GERAL DE JUSTIÇA, vem, respeitosamente, a presença de Vossa Excelência, apresentar as INFORMAÇÕES que seguem, na forma prevista em lei.
I. Dos fatos
Pretende a Autora, por solicitação do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Reciláveis - MNCR, a retirada do ordenamento jurídico da Lei nº 10.531, de 10.09.08, que institui o Programa de Redução Gradativa do Número de Veículos de Tração Animal e de Veículos de Tração Humana, por entendê-la em desconformidade como os artigos 8º, 10, 60, II, “d” e 82, VII, da Constituição do Estado.
A mencionada lei tem a seguinte redação:
LEI Nº 10.531, de 10 de setembro de 2008.
Institui, no Município de Porto Alegre, o Programa de Redução Gradativa do Número de Veículos de Tração Animal e de Veículos de Tração Humana e dá outras providências.
Art. 1º Fica instituído, no Município de Porto Alegre, o Programa de Redução Gradativa do Número de Veículos de Tração Animal e de Veículos de Tração Humana.
Art. 2º O Programa de Redução Gradativa do Número de Veículos de Tração Animal e de Veículos de Tração Humana estabelecerá:
I - o prazo para a realização, pelo Executivo Municipal, do cadastramento social dos condutores de Veículos de Tração Animal (VTAs) e dos condutores de Veículos de Tração Humana (VTHs); e
II - as ações que viabilizarão a transposição dos condutores de VTAs e dos condutores de VTHs para outros mercados de trabalhos, por meio de políticas públicas de transposição anual que contemplem todos os condutores de VTAs e todos os condutores de VTHs identificados e cadastrados pelo Executivo Municipal.
Parágrafo único. Dentre as ações de que trata o inc. II do art. 2º desta Lei, estarão aquelas que qualifiquem profissionalmente os condutores de VTAs e de VTHs identificados e cadastrados pelo Executivo Municipal para o recolhimento, a separação, o armazenamento e a reciclagem do lixo, observando-se as políticas públicas de educação ambiental.
Art. 3º Fica estabelecido o prazo de 8 (oito) anos, para que seja proibida, em definitivo, a circulação de VTAs e de VTHs no trânsito do Município de Porto Alegre.
§ 1º Fica permitida a utilização de VTAs e de VTHs:
I - em locais privados;
II - na área rururbana, incluindo-se os núcleos urbanos intensivos;
III - na região periférica;
IV - em locais públicos, para fins de passeios turísticos; e
V - em rotas e baias que sejam autorizadas pelo Executivo Municipal.
§ 2º Fica proibido:
I - condução de VTAs e de VTHs por menores de 18 (dezoito) anos de idade;
II - condução de VTAs e de VTHs por pessoa não-habilitada, conforme legislação vigente;
III - trânsito de VTAs e de VTHs não-registrados, conforme legislação vigente; e
IV - condução de VTAs e de VTHs em zona urbana, exceto as previstas nos incs. I e IV do § 1º deste artigo.
Art. 4º O Poder Público poderá firmar convênio com instituições públicas e privadas, visando à implementação dos preceitos desta Lei.
Art. 5º Conforme o § 1º do art. 25, o art. 32 e o § 3º do art. 70 da Lei Federal nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 - Lei de Crimes Ambientais-, e alterações posteriores, e o art. 11 da Lei Complementar nº 234, de 10 de outubro de 1990 - Código Municipal de Limpeza Urbana -, e alterações posteriores, as autoridades competentes municipais responderão solidariamente, se não tomarem as medidas legais e administrativas cabíveis ao tomarem conhecimento do descumprimento ao disposto nesta Lei.
Art. 6º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 10 de setembro de 2008.
A tramitação da matéria ocorreu de forma regimental e em conformidade com a Lei Orgânica do Município, e as Constituições do Estado e Federal, tendo sido gradativamente construída e sancionada pelo Chefe do Executivo Municipal.
Esses os fatos.
II - Da ação direta de inconstitucionalidade.
O pedido de declaração de inconstitucionalidade se funda nos supracitados dispositivos da Constituição do Estado, sendo que tal ação não pode prosperar, porque inexistentes os pressupostos legais para tanto.
Senão, vejamos.
1. Preliminarmente
1.1. O pedido de declaração de inconstitucionalidade formulado não é possível juridicamente.
Com efeito, consoante se depreende das razões apresentadas pela Proponente, o vício que alega afetar a lei se situa no fato de ter a mesma legislado sobre trânsito e transporte, matéria que seria de competência privativa da União, consoante disposto no artigo 22, inciso XI, da Carta Magna.
A alegação de inconstitucionalidade está, portanto, esteada não no cotejo da Lei Municipal com a Constituição Estadual, mas sim no confronto de norma da edilidade com comando normativo da Constituição da República.
Ora, inexiste na ordem jurídica brasileira ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo municipal em face da Constituição Federal, o que torna o Autor carecedor de ação.
A matéria já foi objeto de apreciação por parte de nossos Tribunais, que nesse sentido têm decidido, conforme se vê do aresto cuja ementa a seguir se transcreve:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 13721-0/0 -SP
Ação. Condições - Impossibilidade jurídica do pedido - Inconstitucionalidade de Lei Municipal por ofensa à Constituição da República - Artigos 102 e 125 da Constituição da República de 1988 - Carência decretada - Preliminar acolhida
Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei Municipal - Ofensa à Constituição da República, artigo 22, inciso XI - Omissão consciente e proposital do legislador - Pedido de declaração indireta de inconstitucionalidade do inciso XI pela Câmara Municipal - Admissibilidade - Suspensão provisória do inciso - Inconstitucionalidade incidentalmente reconhecida - Extinção do processo sem julgamento do mérito. ( in Ação Direta de Inconstitucionalidade, Lair da Silva Loureiro e Lair da Silva Loureiro Filho, Ed. Saraiva, 1996, pág. 120)
1.2 De sinalar-se que as construções efetuadas, referenciando a inconstitucionalidade ao artigo 8º, da Carta Estadual, porque neste fez seus os princípios federais que regem os Municípios (sic), vênia concedida, não serve para embasar o pedido.
Primeiro, porque tal norma, vê-se, apenas fixa a forma de exercício da autonomia municipal, determinando sua subordinação aos entes superiores, como se impõe no sistema federativo adotado pelo Constituinte, não se podendo daí extrair a conclusão pretendida pela Requerente.
Segundo, porque, admitindo-se, caso possível, a visualização de tal norma sob o enfoque pretendido pela Autora, a argüição de inconstitucionalidade da norma municipal em face da norma estadual implicaria, em última análise, cotejar norma municipal com a Constituição da República, e tal cotejo não é possibilidade prevista no ordenamento jurídico.
Esse é entendimento já esposado pelos nossos tribunais, consoante se vê do aresto a seguir transcrito:
“Ação direta de inconstitucionalidade nº 14.291-0/4-SP”.
Ilegitimidade de Parte Ativa - Ocorrência - Ação Direta de Inconstitucionalidade de Lei Orgânica Municipal - Ajuizamento por partido político - Ausência de prova de sua representação edilidade local - Inteligência do artigo 90, VI da Constituição Estadual- Processo extinto sem julgamento do mérito.
Competência. Ação Direta de Inconstitucionalidade - Confronto com princípios cogentes da Constituição da República - Inadmissibilidade - Artigo 74, XI, da Constituição Estadual - Competência do Supremo Tribunal Federal - Processo extinto sem julgamento do mérito.
Ao Tribunal de Justiça deste Estado não compete declarar a eventual inconstitucionalidade entre lei ou ato normativo municipal, e a Constituição da República, que tem por guardião exclusivo o Supremo Tribunal Federal, ex vi do preceito do artigo 102, letra “a” dessa Carta.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 14.291-0/4, da Comarca de São Paulo, em que é requerente PFL - Partido da Frente Liberal, sendo requerida a Câmara Municipal de Araçatuba e interessada a Procuradoria-Geral do Estado:
ACORDAM, em Sessão Plenária do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por votação unânime, em julgar extinto o processo sem julgamento do mérito.
...
Por outro lado vê-se que o confronto é, desenganadamente, entre lei municipal e princípios cogentes enunciados na Constituição Federal.
...
Conseqüência inarredável. Ao Tribunal de Justiça deste Estado não compete declarar a eventual inconstitucionalidade entre lei ou ato normativo municipal, e a Constituição Federal, que tem por guardião exclusivo o Supremo Tribunal Federal, ex vi do preceito do artigo 102 n. I, letra a, dessa Carta.
Como lembra, com inegável lucidez o Eminente Nereu Cesar de Moraes:
“O controle é vedado, na órbita estadual, quer se dê diretamente, quer indiretamente”.
E prossegue:
“Quando a Constituição do Estado repete princípio da Constituição do Estado, representa, em última análise, cotejo de lei municipal com a Constituição da República”.
Isso porque a norma constitucional estadual não tem autonomia: limita-se a repetir norma de maior hierarquia, cogente, portanto.
Só quando a norma constitucional estadual foi editada como preceito seu é que possibilita o confronto, na ação direta de inconstitucionalidade “, in Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 16.399-1, de Guarulhos."Ausentes, pois, a representação e, em conseqüência à legitimação e ante a manifesta impossibilidade jurídica do pedido, julgam extinto o processo, sem apreciação do mérito.”(in Ação Direta de Inconstitucionalidade, de Lair da Silva Loureiro e Lair da Silva Loureiro Filho, Editora Saraiva, 1996, págs. 52 a 54)”.
Caracterizada estaria, assim, em tal enfoque, a impossibilidade jurídica do pedido, tornando a Requerente carecedora de ação.
1.3. A violação apontada é de preceitos estaduais que apenas repetem o princípio da isonomia inserido na Carta Magna, o que traz a exame do órgão judiciário, em última análise, confronto entre lei municipal e esta, o que não é admitido, consoante se demonstrou.
2. No mérito
2.1. Do descabimento da ação direta de inconstitucionalidade.
Não tem suporte legal à ação direta de inconstitucionalidade, não podendo ser conhecida e acolhida.
Com efeito, dispõe Constituição da República:
“Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição. ...§ 2º Cabe aos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual, vedada a atribuição de legitimação para agir a um único órgão.
A Constituição Estadual, no artigo 95, regulou a matéria, deferindo competência ao Tribunal de Justiça para processar e julgar a ação direta de inconstitucionalidade, sendo que, por norma regimental, a mesma está afeta ao Órgão Especial (artigo 8, letra “j” do Regimento Interno do TJERGS).
Consoante se vê, o permissivo constitucional para propositura da ação direta de inconstitucionalidade de lei municipal é restritivo, admitindo-a quando houver violação de norma constitucional estadual.
No caso enfocado, inexiste violação de norma constitucional estadual, ao contrário, esta permite a atividade legislativa objeto da ação.
Dispõe a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul:
“Art. 13 - É da competência do Município, além da prevista na Constituição Federal e ressalvada a do Estado:
...
III - regular o tráfego e o trânsito nas vias públicas municipais, ...”
Consoante se verifica, a Carta Estadual deferiu ao Município a competência para legislar sobre trânsito e tráfego nas vias municipais, e do exercício dessa competência é que decorreu a Lei 10.531/08.
Assim, esta não viola norma da Constituição Estadual, ao contrário, está esteada em autorização contida na mesma.
Inexistindo violação de norma constitucional estadual por parte da lei municipal, não há suporte legal para o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade, o que acarreta o improvimento do pedido.
2.2. A par disso, inexiste na Lei nº 10.531/08 vício do qual possa decorrer declaração de inconstitucionalidade.
Na realidade, o legislador municipal, ao editá-la, apenas exerceu atribuição constitucionalmente prevista, agiu estritamente no âmbito da competência que lhe foi outorgada.
Consoante se pode ver da leitura do teor do comando normativo impugnado, versa o mesmo, precipuamente, sobre a circulação de veículos de tração animal em vias do Município.
A Lei nº 10.531/08 estabelece programa de redução gradativa de veículos de tração animal e humana, sendo que tal regulamentação se insere dentro do âmbito de competência municipal, haja vista o disposto no artigo 30, inciso I, da Constituição da República. A referida lei visa, precipuamente, ações que viabilizem, por meio de políticas públicas, a transposição desse seguimento para outros mercados de trabalho, dentro do prazo de oito anos da vigência da lei.
Interesse local, na conceituação unânime dos doutrinadores, é o peculiar, isto é, o próprio, o especial, o particular; não o exclusivo, que, em rigor, inexiste, já que afinal de contas, tudo o que aproveita ao Município também serve, de modo mais ou menos próximo, a todo o País.
Em São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, está em vigor legislação, de origem do Poder Legislativo, que dispõe sobre matéria semelhante a Lei 10.531/08.
2.3 Inexiste vício na Lei inquinada de inconstitucional, porque caracterizou estrito exercício de atividade legislativa, decorrente de atribuição constitucionalmente deferida ao legislador municipal.
A referida Lei visa, mais do que resolver uma das questões do trânsito reconhecidamente problemático desta Cidade, mas solucionar, gradativamente, o problema do uso dos veículos de tração humana e animal, que se sabe, constitui-se em fonte de renda para quem as utiliza, questão esta que envolve várias esferas, tais como: social, urbanística, cultural, ecológica e econômica. A simples erradicação de tal meio de transporte poderia trazer problemas sócio-econômicos para parte da população, por isso entendeu-se necessário que fossem tomadas providências, ao longo do tempo para solucionar o problema.
A própria propositura da presente Ação causa uma certa estranheza quando solicitada ao Ministério Público do Estado pelo Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis, alegando vício de origem e em relação a uma legislação avalizada pelo Poder Executivo Municipal e com prazo de oito anos para seu cumprimento.
Já na Exposição de Motivos do projeto de lei estava a preocupação do Autor com a questão social que envolve a matéria, propondo a instalação de galpões de reciclagem de resíduos sólidos, onde o trabalho pode ser efetivado, liberando as vias públicas, evitando a utilização de menores nessas atividades e maus tratos a animais.
Tem-se notícia de que o Município gera em torno de mil toneladas de lixo por dia, das quais, sendo que, em média, duzentas toneladas são de materiais recicláveis ou reutilizáveis. E grande parte desse material vai para os condutores de veículos de tração animal e humana, que vendem aos chamados atravessadores, os quais sairão de cena com aplicação da Lei ora impugnada.
E, neste sentido, o Poder Legislativo, através de suas várias representações partidárias e em contato com diversas entidades, e organizações da sociedade civil, tem buscado que se efetuem ações concretas no sentido de redução gradativa destes veículos, vindo ao encontro do interesse da comunidade.
A partir de tais discussões foi constituído comitê, formado por diversos órgãos municipais e entidades da sociedade civil para regulamentar a lei, tendo sido criado com o objetivo de debater a necessidade de um cadastramento dos carroceiros e carrinheiros que retiram lixo das ruas de Porto Alegre e da melhoria do sistema de organização no trabalho com resíduos sólidos.
A Lei ora impugnada trata de planejamento urbano, postura municipal e de poder de polícia no que se refere a logradouros públicos, matérias de competência de ambos os Poderes. O Código de Posturas Municipal (Lei Complementar nº 12, de 07.07.75) trata de logradouros públicos (art. 17 a 20A) em vários aspectos, inclusive sua utilização.
Ainda, não há na Lei Orgânica de Porto Alegre ou na Constituição do Estado, norma que restrinja a competência do Poder Legislativo sobre a matéria ora impugnada.
Nesse sentido, ensina José Afonso da Silva em relação a iniciativa legislativa concorrente:
“É entendida aquela que pertence indiferentemente a Vereadores e ao Prefeito. Refere-se especialmente à matéria a ser regulamentada, pois existem matérias cuja regulamentação legislativa pode partir de projeto apresentado por Vereador, Prefeito ou pela Mesa da Câmara, pelas comissões permanentes e também pelo povo. Por exemplo, a lei que delimita o perímetro urbano do Município pode ser de iniciativa de Vereadores, da Mesa da Câmara, de comissões permanentes ou do Prefeito. Os Vereadores podem dar início a todas as leis que a lei orgânica não tenha reservado à iniciativa exclusiva do Prefeito.” (Manual do Vereador. Malheiros Ed., São Paulo, 1998, p. 108)
2.4. Cabe, ainda, dizer que a Administração Pública tem efetivamente aprimorado seus meios de ação. No Município de Porto Alegre está em vigor a Lei nº 9.875, de 08 de dezembro de 2005 dispõe sobre o Programa Municipal de Parcerias Público-Privadas, cria o Comitê Gestor de Parcerias Público-Privadas do Município de Porto Alegre - CGPPP/POA - e autoriza o Poder Executivo a instituir Fundo de Garantia de Parceria Público-Privada Municipal - FGPPPM. Assim, há situações que podem ser resolvidas sem gastos públicos, o que pode ser avaliado quando há alegações de vício de origem.
E, ainda sobre a questão do alegado vício de origem este Egrégio Tribunal tem na sua história julgados que ilustram situações em houve sanção do Prefeito, como por exemplo na ADIn 594033599, citada na obra do Des. Vasco Della Giustina (Leis Municipais e seu controle constitucional pelo Tribunal de Justiça), neste excerto do voto do Des. Osvaldo Stefanello:
“Embora de forma sintética, muito bem colocou, o Des. Élvio, o aspecto jurídico-político da questão. O que, a meu sentir, predomina, nessa hipótese, é exatamente esse aspecto: defeituosa na sua origem, formação e aprovação pelo Poder Legislativo, a lei se convalida, se legitima no ordenamento jurídico municipal, com sua sanção pelo Chefe do Executivo. Sanção que não pode ser pura e simplesmente desprezada, como se um nada fosse no mundo jurídico”. (p.176)
Verifica-se, pois, que a matéria é complexa, eis que apresenta aspectos de planejamento urbano, desenvolvimento econômico, preservação do meio ambiente, bem como direitos e garantias do exercício da cidadania: qualidade de vida da população, saúde, segurança, educação, proteção à criança e ao adolescente, muitas vezes envolvidos nessa atividade, sendo uma posição simplista dizer que tudo é apenas competência do Chefe do Poder Executivo Municipal.
Ainda, indiscutível que caracteriza interesse local a forma como se dá o trânsito de veículos dentro de uma cidade, o que atrai a competência legislativa do ente municipal, por força da previsão constitucional constante do artigo 30, inciso I, da Carta Magna, não havendo no ordenamento jurídico norma que estabeleça a competência privativa do Prefeito para legislar sobre a matéria.
A professora Regina Maria Macedo Nery Ferrari, na obra Controle da Constitucionalidade das Leis Municipais, Editora RT, 2ª edição, pág. 41, a respeito, ensina:
“É da competência da União legislar sobre tráfego nas vias terrestres (art. 22, XI). Entretanto, não se põe em dúvida que é do Município a competência para dispor sobre essas matérias em vias municipais.
...
A identificação do âmbito do interesse local é que vai definir a competência sobre a matéria, o que será determinado casuisticamente, sucumbindo, nesses casos, a competência estadual e a federal.”
O eminente Hely Lopes Meirelles, por sua vez, com clareza, a respeito preleciona:
“ TRÂNSITO E TRÁFEGO...”.
De início, convém distinguir essas duas atividades: trânsito é o deslocamento de pessoas ou coisas (veículos ou animais) pelas vias de circulação; tráfego é o deslocamento de pessoas ou coisas pelas vias de circulação, em missão de transporte.
...
O trânsito e o tráfego são daquelas matérias que admitem a tríplice regulamentação - federal, estadual e municipal - conforme a natureza e âmbito do assunto a prover.
...
De um modo geral, pode-se dizer que cabe à União legislar sobre os assuntos nacionais de trânsito e transporte, ao Estado-membro compete regular os aspectos regionais e a circulação intermunicipal em seu território, e ao Município cabe a ordenação do trânsito urbano, que é de seu interesse local (CF, art. 30, I, e V).
Realmente, a circulação urbana e o tráfego local, abrangendo o transporte coletivo em todo o território municipal, são atividades da estrita competência do Município, para atendimento das necessidades específicas de sua população.
O tráfego se sujeita aos mesmos princípios enunciados para o trânsito, no que concerne à competência para sua regulamentação: cabe a União legislar sobre o tráfego interestadual; cabe ao Estado-membro prover sobre o tráfego regional; e compete ao Município dispor sobre o tráfego local, especialmente o urbano.
E assim é na generalidade das nações civilizadas, que reconhecem às comunidades locais o direito-dever de zelar pela circulação e pelo transporte em seu território, preservando o seu sistema viário - urbano e rural - contra o congestionamento do trânsito e os excessos do tráfego.
Todas as medidas de ordenamento da circulação e dos transportes, no território municipal, são da competência do Município, porque visa, no dizer autorizado de Hodges, ao controle do tráfego na via pública: the traffic control in the public street.”“.
Atento a essa realidade e visando cortar pela raiz os conflitos de atribuição entre as entidades estatais interessadas no assunto, o Regulamento do Código Nacional de Trânsito declarou competir aos Municípios especialmente: I - regulamentar o uso das vias sob sua jurisdição, considerando o disposto no artigo 46; “(in Direito Municipal Brasileiro, Malheiros Editores, 10ª ed., págs. 328/329)”.
A jurisprudência pátria também já se pronunciou sobre a questão, tendo definido que o trânsito e o tráfego local são atividades de estrita competência municipal, devendo ser regulados pelo Município, o que se vê da decisão cuja ementa é a seguir transcrita:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI N. 13.237-0/1 - SP”.
Ilegitimidade de Parte. Intervenção de Procurador - Geral do Estado - Descabimento - Impossibilidade de conhecimento da matéria suscitada - Pedido de restituição de prazo indeferido - Preliminar não conhecida.
Ação Direta de Inconstitucionalidade. Transporte - Carga perigosa - Lei Municipal - Vedação - Inadmissibilidade - Matéria inserida no âmbito de competência municipal - Ausência de violação ao princípio constitucional da independência e harmonia dos poderes - Representação de inconstitucionalidade não acolhida.
Trânsito e tráfego, enquanto ocorram em vias urbanas, podem e devem ser regulados, no âmbito do interesse social, pelos Municípios, ou, mais precisamente, por leis municipais.”(in Ação Direta de Inconstitucionalidade, de Lair da Silva Loureiro e Lair da Silva Loureiro Filho, Editora Saraiva, 1996, pág. 294)”.
A Lei nº 10.531/08, que contém normas reguladoras dentro do Município, está, pois, ajustada aos preceitos constitucionais de repartição de competência, porque limitada ao âmbito territorial da cidade e porque afeta a interesse particular, precípuo da população que nela reside.
Não há afronta a norma do artigo 22, inciso XI da Constituição da República, porque esta já exerceu sua competência, mediante edição da Lei nº 9.503/97 - Código de Trânsito Brasileiro, no qual expressamente resguarda a competência municipal para regular o trânsito e tráfego nas vias municipais.
Importante é esse fato - a União, ao exercer a competência que lhe foi deferida pelo artigo 22, inciso XI, da Carta Magna, editando para tal o Código de Trânsito Brasileiro, resguardou a competência municipal para regulamentar o interesse local, em respeito ao regime federativo e à norma constitucional de competência constante do artigo 30, inciso I.
Dispõe, efetivamente, o Código de Transito Brasileiro:
“Art. 24 - Compete aos órgãos e entidades executivas de trânsito dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição:...”.”.”“.
II - planejar, projetar, regulamentar e operar o trânsito de veículos, de pedestres e de animais, e promover o desenvolvimento da circulação e da segurança de ciclistas;
...
XVII - registrar e licenciar, na forma da legislação, ciclomotores, veículos de tração e propulsão humana e de tração animal, fiscalizando, autuando, aplicando penalidades e arrecadando multas decorrentes de infrações;
XVIII - conceder autorização para conduzir veículos de propulsão humana e de tração animal
...
Art. 52 - Os veículos de tração animal serão conduzidos pela direita da pista, junto à guia da calçada (meio-fio) ou acostamento, sempre que não houver faixa especial a eles destinada, devendo seus condutores obedecer, no que couber, às normas de circulação previstas neste Código e às que vierem a ser fixadas pelo órgão ou entidade com circunscrição sobre a via.
Art. 129 - O registro e o licenciamento dos veículos de propulsão humana, dos ciclomotores e dos veículos de tração animal obedecerão à regulamentação estabelecida em legislação municipal do domicílio ou residência de seus proprietários.
Assim, a União, ao exercitar sua competência, o fez de molde a resguardar a competência dos Municípios para regular o que fosse de interesse local, em respeito ao princípio federativo.
A Lei nº 10.531/08, vê-se, pois, nada têm de inconstitucional, mas se ajusta estritamente aos princípios constitucionais, decorrendo do legítimo exercício de competência do Município.
Cabe, ainda, dizer que esse é o entendimento hermeneuticamente correto, pois, é o que permite a compatibilização da norma do artigo 22, inciso XI, da Carta da República com a norma do artigo 30, inciso I, da mesma Carta, o que inocorre em relação à tese adotada pela Proponente.
3. Ante todo o exposto, prestadas as Informações que lhe competem, que evidenciam inexistir qualquer vício que possa macular a lei inquinada de inconstitucional, e que a mesma decorreu do estrito exercício de competência deferida constitucionalmente ao Município, requer sejam indeferidos os pedidos formulados na ação, o que é medida de inteira Justiça.
Porto Alegre, 22 de junho de 2009.
Vereador Sebastião Melo,
Presidente da Câmara Municipal de Porto Alegre.
Marion Huf Marrone Alimena,
OAB/RS 12.281,
Procuradora-Geral.